Entrevista com Jessie MacInnis, pequena agricultora no Canadá e ativista pelos direitos camponeses

Jessie MacInnis é uma pequena agricultora do Canadá. Ela cultiva em Nova Scotia (também conhecida como Mi’kma’ki, a terra não cedida do povo Mi’kmaq) com sua irmã, onde produzem vegetais e flores. Ela é a presidente da Juventude da National Farmers Union [Sindicato Nacional dos/as Agricultures/as], uma organização membro da La Via Campesina. Jessie é integrante do Coletivo de Direitos dos Camponeses da La Via Campesina e realizou sua pesquisa de mestrado sobre a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (UNDROP), que resultou no artigo The Potential of UN Declaration on the Rights of Peasants and Other People Working in Rural Areas: Moving towards rights-based agriculture policy in Canada (2021) [O potencial da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e de Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais: Rumo a uma política agrícola baseada em direitos no Canadá (2021)]. Atualmente, ela está fazendo um doutorado em Geografia, com foco em Soberania Alimentar e Juventude.

Quando a UNDROP foi adotada na Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 2018, o Canadá se absteve. Apesar disso, o Canadá é um dos primeiros lugares onde a UNDROP foi explicitamente citada por um tribunal provincial em um caso relacionado aos direitos dos trabalhadores migrantes. Jessie MacInnis nos explica as dinâmicas em jogo no Canadá sobre os Direitos dos/as Camponeses/as e a importância da jurisprudência.

Primeiro, para nos dar um contexto, você poderia descrever o cenário geral da agricultura no Canadá?

As políticas agrícolas têm cada vez mais amarrado a agricultura a um sistema corporativo no Canadá. Exemplos recentes incluem a redução da supervisão governamental sobre sementes e plantas editadas geneticamente. O governo canadense depositou sua confiança nas corporações do agronegócio e da biotecnologia, em vez de na ciência e no interesse público. É muito assustador para os agricultores, especialmente para os agricultores orgânicos, como eu, que podem sofrer implicações financeiras, de saúde e ecológicas devido ao crescente controle corporativo sobre as sementes e ao desmantelamento da pesquisa e desenvolvimento de sementes financiados publicamente.

A COVID-19 mostrou as rachaduras e as desigualdades profundamente enraizadas que mantêm a terra inacessível, as comunidades rurais desprovidas de recursos e os agricultores endividados e dependentes das empresas que vendem insumos e químicos. Também mostrou a dependência de um suprimento constante de trabalhadores migrantes que sofrem abusos de direitos humanos. No entanto, tem sido um período de enormes aumentos de lucros para as corporações do setor. Além disso, temos a crise climática e a crise de renda, com rendimentos estagnados há anos e muitos agricultores dependendo de trabalhos fora da fazenda para sobreviver. As políticas agrícolas estão começando a acordar para as realidades da crise climática, com mais financiamento disponível para adaptação climática nas fazendas, mas a crise de renda ainda é prevalente para as pequenas fazendas familiares, que são a espinha dorsal do sistema alimentar.

Finalmente, se falamos sobre agricultura no Canadá, precisamos reconhecer que ela é construída sobre a colonização e a terra roubada. A National Farmers Union (NFU) está engajada em conversas entre agricultores e povos indígenas, conversas sobre equidade na terra, devolução de terras e soberania alimentar, mas isso é apenas o começo. Nossa agricultura é construída sobre violência colonial que ainda não foi reconciliada. Os agricultores têm um papel crítico a desempenhar tanto em reconhecer nossa relação com a terra quanto em encontrar caminhos para viver em relações corretas com os povos indígenas.

Nesse cenário agrícola, temos uma pluralidade de perspectivas sobre como as políticas agrícolas devem ser desenvolvidas e quais objetivos buscam alcançar. Algumas das maiores organizações agrícolas definitivamente tiveram mais influência sobre os formuladores de políticas no passado, mas a NFU e outros ativistas da soberania alimentar estão ganhando terreno, especialmente nos níveis local e regional.

Em 2020, o Superior Tribunal de Justiça de Ontário emitiu uma decisão baseada na UNDROP em defesa de um grupo de trabalhadores migrantes durante a pandemia de COVID-19. Você pode nos contar mais sobre essa decisão?

Esse caso mostra o potencial legal da UNDROP. Acredito que a ação legal é um caminho para os países que não aprovaram a Declaração nas Nações Unidas incorporarem seus artigos e estabelecerem precedentes legais.

Em 2020, no auge da pandemia de COVID-19, a Canadian Lawyers for International Human Rights [Advogados canadenses para direitos humanos internacionais] usou o Artigo 23 da UNDROP em um tribunal provincial em defesa de um grupo de trabalhadores migrantes que enfrentavam condições de vida perigosas e superlotadas.

Para contextualizar, as fazendas canadenses empregam quase meio milhão de trabalhadores agrícolas por meio de um programa federal. Esse programa tem sido alvo de acusações de violações de direitos humanos ao longo dos anos: más condições de vida, salários baixos e nenhum caminho para a residência permanente. Ao mesmo tempo, o Canadá depende do trabalho deles para garantir o suprimento de alimentos.

Em março de 2020, logo após o estado de emergência ser declarado, o governo federal determinou um período de isolamento de 14 dias para todos os trabalhadores estrangeiros temporários que entrassem no Canadá, ao mesmo tempo em que garantia que os trabalhadores em isolamento em grupo teriam pelo menos 2 metros de espaço por pessoa e limitava o número de trabalhadores vivendo juntos em um alojamento.

Quando essa política foi determinada, uma grande fazenda industrial em Ontário (centro do Canadá) que emprega trabalhadores migrantes apresentou dois planos de isolamento inadequados antes de solicitar uma audiência sobre a ordem de saúde pública que limitava o número de trabalhadores agrícolas em um alojamento. Na audiência, a fazenda argumentou que o requisito de três trabalhadores agrícolas por alojamento era arbitrário e não reconhecia a importância dos trabalhadores migrantes para o suprimento de alimentos do Canadá. Eles argumentaram que não conseguiram trazer tantos migrantes quanto normalmente fariam, e isso prejudicou sua produção de alimentos.

O Superior Tribunal de Justiça de Ontário respondeu dizendo que: “reduzir as desigualdades de saúde, conforme exigido pelas diretrizes, requer que o número de trabalhadores que podem se isolar juntos seja tal que o risco à sua saúde seja comparável ao do resto da população quando estão em quarentena. Permitir que um número maior de pessoas se isolem juntas expõe os trabalhadores migrantes a um nível de risco não tolerado para outros na comunidade, aumentando assim a vulnerabilidade de um grupo já vulnerável.”

Ao chegar a essa decisão, o Tribunal citou a UNDROP pela primeira vez no Canadá. A forma como a citaram é importante: “…além disso, a UNDROP faz parte do conjunto de leis e normas de direitos humanos às quais os adjudicadores canadenses podem recorrer ao interpretar obrigações legais ou de direito comum e ao revisar decisões administrativas.” Eles citaram o artigo 23.1, que afirma: “Os camponeses e outras pessoas que trabalham em áreas rurais têm o direito de desfrutar do mais alto padrão possível de saúde física e mental.”

Portanto, o contexto e o resultado do caso demonstram a aplicabilidade da Declaração no contexto canadense. Promover esse caso é algo que precisamos continuar fazendo. É estratégico expandir a rede de advogados de direitos humanos que conhecem a UNDROP e dar a eles esse exemplo.

Agora que você tem essa jurisprudência, quais são os próximos passos?

Acho que a primeira consideração é escolher o nível certo para trabalhar. Na minha visão, é preciso fazer análises críticas e conexões no nível local primeiro, e há muito valor em construir capacidades localmente e depois escalar para outros níveis. Embora a UNDROP seja uma ferramenta que podemos usar em qualquer escala, às vezes pode ser mais aplicável no nível local. No Canadá, muitas políticas agrícolas são feitas no nível provincial (com exceção de políticas de comércio e sementes, por exemplo). Nesse nível, há geralmente um melhor entendimento entre os agricultores sobre quais são suas necessidades coletivas e também uma maior capacidade de defender mudanças políticas tangíveis. Acredito que há potencial em aplicar direitos muito específicos a situações muito específicas, em vez de tentar implementar a UNDROP em nível nacional. Podemos fazer a conexão aqui em casa sobre como aplicá-la ao nosso contexto. O elo que falta é a educação política: precisamos de ferramentas de educação popular envolventes e relevantes para demonstrar a conectividade entre essa Declaração da ONU um tanto esotérica e as realidades dos agricultores no Canadá rural. Acho que a NFU está fazendo um bom trabalho ao conectar nosso trabalho atual de políticas agrícolas à UNDROP, o que é um primeiro passo crítico para simplesmente conscientizar as pessoas sobre sua existência.

No nível nacional, essa jurisprudência sobre os direitos dos trabalhadores migrantes pode ter muito peso em termos de precedente, mas enfrentamos obstáculos no nível local em termos de expandir o entendimento básico da UNDROP além dos membros da NFU e dos advogados de direitos humanos. No Canadá, eu diria que o conhecimento sobre direitos humanos – especialmente relacionados à agricultura – é baixo. Quanto mais educarmos o público sobre a necessidade de mudar as políticas agrícolas em direção a uma abordagem baseada em direitos, mais provável será que a UNDROP seja utilizada em contextos legais e políticos.

O que você diria que são os outros direitos em que devemos nos concentrar para a implementação da UNDROP no Canadá?

A questão da terra requer uma consideração séria no Canadá. A UNDROP oferece um texto sobre o direito à terra que é uma ruptura radical em relação à forma como a posse e as políticas de terra são estabelecidas aqui. No entanto, não podemos ultrapassar ou contradizer o trabalho feito pelos defensores da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP). Seria necessário uma coordenação séria para garantir que os direitos à terra da UNDRIP e da UNDROP sejam implementados de forma complementar.

Estamos ouvindo muito dos jovens na NFU sobre a terra. Quando eles falam sobre suas necessidades em termos de apoio técnico para defesa, o acesso à terra agrícola e ao capital são as questões mais fundamentais que identificam como barreiras para entrar na agricultura. Além disso, há a crise de sucessão: temos uma população de agricultores que está envelhecendo rapidamente, a idade média é de 55 anos agora. Um problema, entre muitos, é que não houve nenhum tipo de apoio à aposentadoria para os agricultores no passado, então, ao se aposentar, muitos agricultores vendem suas terras para o maior lance para ter uma aposentadoria digna. Isso criou grandes obstáculos para os jovens que não têm muito capital, especialmente aqueles que não são de famílias agrícolas. Também precisamos considerar quem vai assumir as fazendas de grãos e commodities quando esses agricultores se aposentarem. Jovens agricultores da primeira geração estão começando novas fazendas, mas a maioria é de pequena escala devido aos requisitos de capital das operações maiores. Tenho medo da consolidação corporativa que continuará a se desdobrar se esta e a próxima geração não puderem arcar com os custos de operar fazendas maiores.

Então, considerando as múltiplas crises, precisamos falar sobre soluções tangíveis e alternativas de posse da terra que levem em consideração as necessidades das comunidades indígenas e dos agricultores de todas as idades ao nosso redor. Estamos pensando em formas criativas de acessar a terra, seja em modelos de cooperativas ou fundos de terras, mas também precisamos defender apoios governamentais que reforcem nossos esforços. Há muitas perguntas e poucas respostas sobre a sucessão de terras, e isso é algo que, como presidente da Juventude da NFU, quero trabalhar. Usar a UNDROP como uma estrutura aspiracional para os direitos à terra neste país pode ser um conceito unificador se pudermos expandir o entendimento de sua relevância para o contexto canadense.

Outra área particularmente relevante para o contexto canadense são as sementes. A NFU tem uma longa história de trabalho em direção à soberania das sementes. Usar o artigo 19 é muito oportuno, pois a soberania das sementes está sob mais ameaça agora do que nunca. O governo federal essencialmente deu carta branca às empresas de biotecnologia no sistema alimentar. Desta vez, eles fizeram isso removendo verificações de segurança sobre a ciência corporativa e negando transparência ao público. O Ministro da Agricultura anunciou que o Canadá isentará plantas editadas geneticamente de regulamentação e notificação pública obrigatória, a menos que contenham DNA estrangeiro ou sejam tolerantes a herbicidas. Para todas as outras mudanças em uma planta editada geneticamente, as empresas decidirão se seu produto deve ser avaliado por um órgão federal. Portanto, as empresas de biotecnologia terão a palavra final sobre se seus produtos podem causar danos ambientais, e o público não saberá sobre a qualidade das avaliações que escolherem fazer ou se farão alguma. É assustador.

Costumávamos ter um sistema público robusto de melhoramento de sementes, mas ele foi desmantelado nas últimas duas décadas. Vimos as sementes cada vez mais sob controle corporativo, mas sabemos que um bom sistema público é possível. É isso que a NFU está defendendo. Quanto mais profundamente a agenda corporativa das sementes se enraizar em nossas políticas agrícolas, mais desafiador será sair dessa confusão. Agora até temos um conglomerado de quatro corporações de sementes que mudaram seu nome para Seeds Canada, o que soa como um órgão governamental. Essas mudanças estão acontecendo rapidamente, é assustador. O público deveria estar em pé de guerra sobre a consolidação corporativa das sementes, e usar a UNDROP como base é um bom lugar para começar a pressionar por mudanças.

As sementes são um dos recursos mais preciosos e profundamente culturais que temos. O artigo 19 reforça a Convenção sobre Diversidade Biológica e o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura. O Canadá assinou ambos. Também assinou e ratificou a UNDRIP, que faz referência direta ao direito indígena às sementes. Há um forte argumento de que o que está acontecendo agora vai contra o que o Canadá já assinou, e o fato de o Canadá não ter assinado a UNDROP não deve removê-la da lista de razões pelas quais devemos questionar o que o governo está permitindo que gigantes corporativos façam.

Quais você acha que são os principais desafios para implementar a UNDROP?

Um dos maiores obstáculos é a linguagem usada na UNDROP. É desafiador chamar a atenção dos formuladores de políticas devido ao entendimento da palavra “camponês” e do campesinato como um grupo social, que não é bem compreendido no Canadá e no idioma inglês de forma mais ampla, porque muitas vezes é usado de forma pejorativa. Há fortes argumentos para o uso político do termo “camponês”, mas quando se trata de formulação de políticas e trabalho de incidência, ainda há muitas desconexões. Aqui, as políticas agrícolas são voltadas para a agricultura industrial corporativa, e a linguagem de “camponês” pode denotar uma identidade política ou social contrária ao que a agricultura canadense tenta ser percebida em casa ou no exterior. “Camponês” vai de encontro a “empreendedor” e dá a impressão de atraso para quem não está familiarizado com o termo em um sentido político. Da mesma forma, acho que uma das razões pelas quais o governo se absteve durante a adoção da UNDROP na ONU é que eles não conseguem se ver nesse termo ou como ele poderia ser aplicado neste contexto. No final das contas, ainda há muito trabalho a ser feito para que todos estejam na mesma página em termos da aplicabilidade desse tipo de linguagem no contexto canadense.

Então, como preencher essa lacuna para os agricultores que são camponeses em um sentido global?

Alguém que eu admiro muito e considero uma mentora, Nettie Wiebe, ex-presidente da NFU e membro do ICC da LVC, esteve presente no início da LVC. Ela foi citada dizendo que, quando pensa na palavra “camponês”, para ela isso significa “pessoas da terra”. Isso ressoa comigo: eu me considero uma “pessoa da terra” porque trabalho com a terra, a nutro, tento viver em harmonia com ela e não extrair dela. Ela acredita que é muito importante resgatar essa linguagem, dizer que somos camponeses porque é nossa relação com a terra e a comida que nos distingue como um grupo social, que não somos parte da máquina capitalista. Podemos funcionar dentro de um sistema capitalista, mas não estamos necessariamente buscando fins capitalistas, se isso faz sentido.

Como você mencionou anteriormente, o Canadá finalmente adotou a UNDRIP, após se abster na Assembleia Geral das Nações Unidas. Como isso pode influenciar e ajudar a implementação da UNDROP?

O que precisamos desesperadamente nos espaços de soberania alimentar e agroecologia em todo o país é construir coalizões e redes de solidariedade. Precisamos sair e conversar com agricultores que podem não ter as mesmas políticas ou valores fundamentais, ou falar a mesma linguagem, mas que, no fundo, têm as mesmas necessidades e direitos. Precisamos construir pontes entre agricultores e pessoas que foram despossuídas de suas terras, como povos indígenas e outras minorias étnicas. Precisamos alcançar e encontrar maneiras de garantir que nosso movimento esteja crescendo. É apenas com esse tipo de crescimento e construção de nossa rede que teremos a capacidade de fazer o tipo de organização que foi realizada na ratificação da UNDRIP no Canadá.

Sei que temos uma base forte, mas também precisamos estender e expandir, e isso tem que vir com um toque humano. Temos que ir até nossas comunidades e ter discussões abertas com outros agricultores e pessoas da terra que talvez não se sintam conectadas a uma comunidade agrícola ou a uma comunidade mais progressista como a NFU, mas que talvez a aceitassem se tivessem a oportunidade e alguém as procurasse. Falar sobre as necessidades básicas das pessoas e o desejo de fazer parte de uma comunidade que está avançando em conjunto pode ser maior do que qualquer opinião política específica. A maioria dos agricultores faz parte da organização agrícola dominante, não da NFU, e cabe a nós sermos criativos e alcançá-los onde estão, não onde gostaríamos que estivessem, politicamente. Ao construir essa comunidade estendida e expandida, podemos usar a UNDROP como nosso bloco de construção, mas é no nível da base que isso deve acontecer.

Publicaciones Similares