Camponeses quenianos contestam a constitucionalidade da Lei de Sementes
Em 2022, quinze camponeses de diversas regiões do Quênia entraram com uma ação judicial contra a Lei de Sementes e Variedades Vegetais. Essa lei proíbe e até criminaliza a venda e o intercâmbio de sementes tradicionais por parte daqueles que as desenvolveram. A ação se baseia na Constituição do Quênia, pois, como será discutido neste artigo, essa lei entra em conflito direto com os direitos camponeses garantidos pela Constituição e representa um obstáculo para o desenvolvimento de suas atividades e meios de subsistência. Além disso, viola diretamente o artigo 19 da UNDROP (Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais), que trata do direito às sementes. O primeiro parágrafo do artigo estabelece que os camponeses têm: «d) O direito de conversar, utilizar, trocar e vender as suas sementes ou material de propagação conservados após a colheita». Qualquer lei que diga o contrário está em desacordo com a UNDROP e deve ser alterada.
No dia 24 de julho de 2024, o caso será julgado pelo Tribunal, podendo se tornar um precedente importante e que merece atenção e apoio. Essa ação é um excelente exemplo de como uma estratégia legal pode estar enraizada na luta dos camponeses e ser diretamente liderada por eles.
Camponeses quenianos entraram com uma ação alegando que a Lei de Sementes e Variedades Vegetais (CAP 326), que criminaliza o intercâmbio ou a venda de variedades de sementes dos camponeses , viola várias disposições da Constituição do Quênia.
Uma lei restritiva e criminalizadora para os sistemas de sementes camponesas
O Quênia foi um dos primeiros países africanos a adotar medidas legais destinadas a apoiar o melhoramento vegetal comercial e a privatização das sementes. O país aprovou a Lei de Sementes e Variedades Vegetais em 1972 e, em 1999, tornou-se a segunda nação africana a aderir à Convenção da UPOV (União Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais), que oferece proteção de propriedade intelectual para novas variedades de cultivos. Em 2012, a lei original de sementes do Quênia de 1972 foi revogada e substituída por uma versão atualizada que a alinhava aos requisitos mais rigorosos da UPOV-91. A revisão da lei foi negociada por órgãos governamentais e empresas de sementes do setor privado, sem a participação significativa do setor agrícola e rural, e foi realizada principalmente para criar um «ambiente propício para um setor de sementes crescente e inovador».
A Lei de Sementes e Variedades Vegetais do Quênia, capítulo 326 (SPVA), é atualmente uma das leis mais restritivas do mundo em relação à comercialização de sementes. A lei estabelece um «Índice de Nomes de Variedades Vegetais» cuja venda é permitida. Para constar no índice, as variedades devem ser homogêneas, estáveis e ter passado por testes oficiais de desempenho. A venda de qualquer semente que não esteja nessa lista nacional é proibida. Especificamente, a venda é definida de forma ampla, não apenas como «oferta ou exposição para venda», mas também como «troca» e «intercâmbio» (CAP 326:2). Qualquer pessoa que cultive ou venda sementes deve estar registrada (CAP 326:3:1:c) perante a «autoridade competente» (CAP 326:3:3:e). Qualquer pessoa que venda sementes em violação às disposições da lei comete um crime sujeito a uma multa de até um milhão de xelins (cerca de 7.500 dólares americanos) ou a uma pena de prisão de até dois anos (CAP 326:10:4).
Enquanto a lei reforça e fortalece os «direitos dos obtentores», os direitos comuns e tradicionais dos camponeses quenianos de compartilhar e trocar sementes são legalmente proibidos e criminalizados. As variedades locais geneticamente diversas, desenvolvidas e cultivadas pelos camponeses, não atendem aos requisitos DHE (distintas, homogêneas e estáveis) para constar no índice nacional. A maioria dos agricultores não tem os recursos financeiros e administrativos necessários para realizar testes de desempenho, registrá-las e manter registros rigorosos. Mas, se os agricultores compartilham, trocam ou vendem sementes que são fruto de seu próprio trabalho e engenho, eles enfrentam multas pesadas e até prisão. A Lei de Sementes e Variedades Vegetais do Quênia (CAP 326) é um ataque direto e injusto aos direitos e meios de subsistência dos agricultores do país.
O surgimento da luta contra a perda da soberania sobre as sementes
Os pequenos agricultores do Quênia têm se mostrado cada vez menos dispostos a aceitar a privação de direitos causada pela imposição da Lei de Sementes e Variedades Vegetais. A Rede de Protetores de Sementes do Quênia (Seed Savers Network Kenya – SSNK) tem incentivado e catalisado sua resistência. A SSNK é uma organização sem fins lucrativos que aplica os princípios da agroecologia e da educação participativa em apoio aos sistemas de sementes dos camponeses e aos direitos associados. A SSNK desenvolveu uma rede de setenta bancos comunitários de sementes, e seu modesto campus recebe um fluxo quase constante de camponeses que participam de cursos de treinamento.
Esse fluxo de participantes de diversas comunidades e regiões do Quênia tem sido um fórum fértil para o compartilhamento de informações e ideias. Dos debates entre os camponeses e a equipe da SSNK, surgiu a convicção de que era necessário agir para deter a erosão da soberania das sementes e preservar a liberdade dos camponeses de compartilhar e conservar seu patrimônio genético. Uma ideia central foi a constatação de que as restrições impostas pela Lei de Sementes e Variedades Vegetais parecem violar disposições-chave da Constituição queniana. Dominic Kimani, responsável pela incidência, monitoramento e avaliação da SSNK, explica:
«A Constituição do Quênia de 2010 é progressista e apoia um sistema de sementes gerido pelos camponeses . Isso está consagrado no artigo 11, que se concentra na cultura e valoriza as sementes indígenas por sua contribuição ao desenvolvimento econômico. Nossa Constituição prevê o reconhecimento e a proteção das sementes indígenas e, sendo a lei suprema do país, as tentativas da Lei de Sementes de limitar o uso de sementes indígenas pelos agricultores a contrariam. Há uma necessidade urgente de obter uma interpretação judicial que garanta a proteção dos direitos dos agricultores.»
Uma petição baseada na Constituição queniana e nos direitos humanos
Ao longo de dois anos, a equipe da SSNK facilitou a organização de uma coalizão de grupos de sete condados do Quênia. A SSNK estabeleceu uma parceria de trabalho com a Greenpeace África, o que levou à obtenção de representação legal formal. Em setembro de 2022, uma petição foi apresentada ao Tribunal Superior do Quênia em Machakos, na Divisão Constitucional e de Direitos Humanos. Dos dezessete peticionários, quinze eram pequenos agricultores de sete condados do Quênia. Cada um deles agiu em seu próprio nome e em nome de grupos locais de camponeses de seus respectivos condados e subcondados. A Greenpeace África e a SSNK juntaram-se aos camponeses como décimo sexto e décimo sétimo peticionários.
A petição parece ser muito sólida. Ela afirma que a Lei de Sementes e Variedades Vegetais de 2012 viola vários artigos da Constituição. Em resumo, alguns dos pontos mais importantes incluem:
- O artigo 2(6) da Constituição estabelece que os tratados internacionais ratificados pelo Quênia fazem parte da legislação do país. A petição sugere que a SPVA não é consistente com o reconhecimento dos direitos dos camponeses e pequenos produtores estabelecido pelo Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura.
- O artigo 43(1)(c) da Constituição estabelece o direito «a não passar fome». A petição sugere que as restrições da SPVA ao compartilhamento e intercâmbio de sementes aumentam injustificadamente a insegurança alimentar.
- O artigo 11(2)(c) da Constituição ordena a promoção dos «direitos de propriedade intelectual do povo queniano». A petição sugere que a SPVA não concede nenhuma proteção às variedades locais dos camponeses .
- O artigo 11(3)(a) da Constituição exige que as comunidades recebam compensação ou royalties pelo uso de seu patrimônio cultural. A petição sugere que as variedades dos camponeses são uma forma de patrimônio cultural e que a SPVA não recompensa as comunidades por sua apropriação e uso.
- O artigo 11(3)(b) da Constituição é talvez o mais poderoso de todos. Ele ordena ao Parlamento que «reconheça e proteja a propriedade das sementes e variedades vegetais indígenas, suas características genéticas e diversas, e seu uso pelas comunidades do Quênia». A petição sugere que a SPVA viola esse artigo ao criminalizar – em vez de reconhecer e proteger – práticas de soberania alimentar, como guardar e compartilhar sementes.
O ângulo dos «direitos humanos» parece especialmente forte, dado o crescente reconhecimento do direito dos camponeses às sementes na legislação internacional de direitos humanos.
Francis Ngiri é um dos peticionários e um dos líderes da Rede de Agricultores de Makongo, no condado de Machakos. Ele explicou a situação da seguinte forma:
«Nossa Constituição nos garante a liberdade sobre nossas sementes, que devemos nos beneficiar de nossos recursos naturais, incluindo as sementes. E acreditamos que a lei de 2012, que criminaliza a venda de nossas sementes, ou o intercâmbio ou até mesmo a doação, estava errada, e fomos aos tribunais em busca de uma interpretação para que o tribunal possa interpretar e talvez proibir essa lei ruim que nos impede de possuir nossas sementes.»
Francis Ngiri
Os camponeses quenianos não são os únicos a recorrer aos tribunais para defender seu direito às sementes. Uma coalizão de camponeses e organizações da sociedade civil da Nigéria entrou com uma ação em 2021, solicitando uma liminar com base em argumentos constitucionais para impedir a aplicação de uma lei de proteção de variedades vegetais que permitiria ao país aderir à UPOV-91. E em Honduras, um grupo de camponeses entrou com uma ação para declarar inconstitucional uma lei de sementes de 2012. Eles perderam em 2016 e novamente em 2018, mas em 2021 a Suprema Corte de Justiça de Honduras finalmente decidiu a seu favor e anulou a lei.
As engrenagens da justiça queniana têm girado muito lentamente, e alguns sugerem que isso tem sido intencional. Há especulações de que o governo está levando a ação muito a sério e está trabalhando para atrasar os procedimentos e ganhar tempo para fazer alguns ajustes reformistas que desmobilizem o ativismo em torno das sementes. Outra audiência está marcada para 24 de julho. Os camponeses por trás do desafio legal estão ansiosos para avançar e estão se organizando para levar um grande número de camponeses à audiência. Segundo Beatrice Wangui, uma das demandantes e membro da Rede de Protetores de Sementes de Nakuru, «estamos ansiosos para ver as reações do Procurador-Geral e do KEPHIS [Serviço de Inspeção Fitossanitária do Quênia] por meio de seus advogados. Os agricultores também estarão representados e esperamos um veredicto positivo após essa audiência.»
Inexplicavelmente, a ação dos camponeses quenianos recebeu pouca cobertura tanto no Quênia quanto internacionalmente. Os efeitos prejudiciais da legislação restritiva de sementes baseada na UPOV e em modelos semelhantes já são bem reconhecidos e documentados. O que é necessário é uma maior conscientização e atenção às novas plataformas de resistência e às ações concretas que estão sendo tomadas em defesa dos direitos dos camponeses e da liberdade das sementes.
A Rede de Protetores de Sementes do Quênia (SSNK) pede solidariedade internacional e apoio para aumentar a conscientização sobre sua ação em defesa dos direitos dos camponeses. Especialmente, é necessário apoio financeiro para viajar até a audiência e para continuar com o caso. Aqueles interessados em oferecer apoio podem entrar em contato com a SSNK por e-mail em [email protected] ou por telefone no número +254712451777 para mais informações.