Corte Interamericana de Direitos Humanos: primeira jurisprudência sobre os vínculos entre as Declarações sobre os Direitos dos Camponeses e dos Povos Indígenas
Caso comunidades indígenas membros da associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) vs. Argentina
Em fevereiro de 2020, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu uma sentença na qual reconheceu os direitos tanto dos povos indígenas quanto dos camponeses. A Corte ordenou a restituição do direito dos povos indígenas às suas terras e a devolução de seu território, mas, ao mesmo tempo, baseou-se na Declaração sobre os Direitos dos Camponeses para proteger os direitos dos camponeses não indígenas que terão que ser deslocados. Dessa forma, a Corte alcançou um equilíbrio entre os direitos dessas duas comunidades, fornecendo o primeiro exemplo de uma conexão bem-sucedida entre as duas declarações de direitos da ONU.
Pela primeira vez em um caso contencioso, a Corte analisou os direitos a um meio ambiente saudável, à alimentação adequada, à água e à identidade cultural de forma autônoma, com base no artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos. A Corte ordenou medidas de reparação específicas para a restituição desses direitos, incluindo ações para garantir o acesso à água e à alimentação, a recuperação de recursos florestais e a revitalização da cultura indígena. O caso está relacionado à reivindicação de reconhecimento da propriedade de suas terras por parte das Comunidades Indígenas pertencentes aos povos Wichí (Mataco), Iyjwaja (Chorote), Komlek (Toba), Niwackle (Chulupí) e Tapy’y (Tapiete) na Província de Salta, Argentina (na fronteira com o Paraguai e a Bolívia). Essas terras também foram ocupadas por outros moradores, e uma ponte internacional foi construída sem consulta prévia por parte do Estado. A presença indígena na área foi documentada de forma constante desde pelo menos 1629.
Em sua sentença, a Corte determinou que o Estado violou o direito de propriedade comunitária ao não fornecer segurança jurídica e permitir a presença de moradores «criollos» (não indígenas) no território. Isso ocorreu apesar da reivindicação indígena pela propriedade durar mais de 28 anos. A Corte também concluiu que a Argentina não possui legislação adequada para garantir suficientemente o direito de propriedade comunitária.
Em referência à Declaração sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (UNDROP), esta sentença é interessante porque o conflito inclui famílias camponesas que, ao longo de décadas, foram se estabelecendo nos territórios indígenas com o incentivo de funcionários públicos, buscando interferir no território das comunidades indígenas por meio da reivindicação de terras.
Apesar disso, as famílias camponesas (denominadas «criollas» na sentença) também são vulneráveis e sofrem violações de seus direitos. Nesse contexto, a sentença caracteriza essas famílias de acordo com a definição expressa na UNDROP e, citando-a, estabelece diretrizes para construir um diálogo e uma política que avancem em direção à realocação dessas famílias, seus cultivos e animais. O objetivo é que o Estado possa cumprir sua obrigação de reconhecer e efetivar a propriedade comunitária das famílias indígenas, garantindo, ao mesmo tempo, os direitos estabelecidos na UNDROP.
A Corte ordenou ao Estado, em um prazo não superior a seis meses, a titulação, delimitação e demarcação de 400.000 hectares reivindicados dentro dos lotes 14 e 55 em um único título coletivo em nome de todas as comunidades indígenas que habitam nesses lotes. Além disso, determinou a remoção de todas as cercas e a adoção de medidas necessárias para prevenir a construção de novas cercas, incluindo a elaboração e implementação de um plano em consulta com as comunidades.
Sobre a realocação das famílias camponesas, a sentença afirma no parágrafo 136:
“As observações do Estado sobre os moradores criollos que habitam nos lotes 14 e 55 estão de acordo com as considerações feitas no âmbito das Nações Unidas em relação aos camponeses, por meio da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e de Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais (doravante ‘Declaração sobre os camponeses’).”
No parágrafo 138, a sentença destaca que “em geral, os camponeses sofrem de forma desproporcional com a pobreza, a fome e a desnutrição”; eles têm ou costumam ter, por “vários fatores”, “dificuldades para se fazerem ouvir e defender seus direitos humanos”, inclusive para “acessar tribunais, agentes de polícia, promotores e advogados”. Em particular, a Declaração sobre os Camponeses ressalta que o “acesso” à terra e aos recursos naturais “está se tornando cada vez mais difícil” para os “habitantes de áreas rurais”, e que há diversos “fatores que dificultam” que essas pessoas possam “defender seus direitos de posse e garantir o uso sustentável dos recursos naturais dos quais dependem”. A Declaração sobre os camponeses afirma que as “normas e princípios internacionais de direitos humanos” devem ser “interpretados e aplicados de forma coerente” com a “necessidade de proteger melhor os direitos dos camponeses”. A Corte esclarece que não está avaliando a responsabilidade do Estado com base na Declaração sobre os Camponeses, mas faz referência a ela como uma fonte complementar que, em linha com as observações da Argentina sobre a vulnerabilidade da população criolla, demonstra a relevância de considerar a situação particular dessa população para salvaguardar seus direitos.
Além disso, no parágrafo 138, a Corte esclarece: “No entanto, como já foi dito, não há dúvida sobre a propriedade das comunidades indígenas sobre 400.000 hectares dos lotes 14 e 55. O Estado, para garantir esse direito, deve realizar a demarcação da propriedade indígena, bem como adotar ações para concretizar a transferência ou realocação da população criolla (camponesa) para fora dessa área. No entanto, não se pode ignorar a forma como o Estado deve cumprir sua obrigação. Nesse sentido, a Argentina deve agir observando os direitos da população criolla (população camponesa) (infra, parágrafo 329 d), e nota de rodapé 323 da sentença).”
Embora este processo na CIDH esteja fundamentalmente baseado nos direitos dos povos indígenas, é importante destacar que, ao abordar questões relacionadas à comunidade camponesa no território, a Corte se apoia na UNDROP para salvaguardar direitos e administrar os procedimentos das medidas e ações que exige do Estado argentino.
Podemos, portanto, afirmar que, embora o Estado argentino tenha se abstido na votação da Assembleia Geral das Nações Unidas quando a Declaração foi adotada, a UNDROP já é uma norma internacional de novos direitos para a CIDH. Assim, futuras demandas relacionadas a violações dos direitos dos camponeses na Argentina poderão ser levadas a essa instância com expectativas positivas para os camponeses e camponesas cujos direitos são violados.
Acesso à sentença completa ou ao resumo nos seguintes links:
- Resumo: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_400_esp.pdf
- Sentença completa: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_400_esp.pdf
Diego Montón, MNCI Somos Tierra, Coletivo de Direitos Camponeses da Via Campesina Internacional